Music & Readings

Music & Readings
Music & Readings

terça-feira, 17 de janeiro de 2012



O Chapéu

Planejei meticulosamente o assassinato de Manoel Soares. Podia fazê-lo com as próprias mãos; preferi, porém, contratar um pistoleiro.
Para que Isabel não sofra, ou não sofra tanto, é imprescindível tirá-lo do caminho. se eu próprio o matasse, o complexo de culpa iria atormentá-la tornando impossível o grande e mais intenso amor de sua vida, fogo em que se tem consumido lentamente (emagrece e chora em silêncio, tem os olhos ardidos e o corpo trêmulo), e entre um gemido e outro de prazer eles haveriam de ouvir seu riso sarcástico e maldoso.
Mas para eliminá-lo da face da terra, arrancá-lo da cidade como se fosse uma erva maldita, foi preciso antes que eu o odiasse. Por isso, dias após dia (somos colegas de partição), procurei descobrir nele atitudes dissimuladas, falsidades, orgulho, mesquinharias que me dessem motivação para levar adiante o meu intento. o ódio foi se alimentando do conhecimento. Hoje pela manhã atingiu o limite máximo, quando entreguei ao pistoleiro a quantia estipulada para o crime.
Exatamente às vinte horas, todas as noites, ele sai de seu apartamento à rua G, prédio 203. Hoje é segunda-feira, portanto estará vestido de calça de linho branco, camisa azul-marinho e chapéu de feltro. Preste atenção ao chapéu. É um dos últimos homens a usá-lo nesta cidade. Atire assim que atravessar a porta de vidro do edifício.
O pistoleiro recuou e, sem dizer uma palavra, saiu da sala.
Os longos anos de convívio, e o plano longamente arquitetado, me possibilitaram conhecer todos os hábitos de Manoel Soares. Sim, não há possibilidade de engano. Exatamente às vinte horas estará na calçada, tirará o chapéu e baterá com a mão sobre o feltro (para tirar o pó), olhará indeciso para ambos os lados e enfim optará pelo direito, caminhará durante quarenta e cinco minutos, ora fumando ora assobiando uma velha canção portuguesa, e depois retornará ao apartamento. Suponho que antes de dormir mergulhe a dentadura num copo d'água displicentemente.
Hoje, durante o expediente, surpreendi-o agitado em diversas circunstâncias, esfregando as mãos com impaciência. Duas ou três vezes foi ao banheiro, atitude totalmente inabitual.
Pressente alguma coisa? E se na hora H resolver não fazer o passeio? E se estiver com cólicas? um medo inconsciente? E se no exato momento passar pela ria um sujeito qualquer vestido de forma semelhante e o meu contratado disparar sobre um inocente?
Não. Absolutamente não é hora de pensar em tais possibilidades. Manoel Soares será assassinado dentro de cinco minutos. O relógio da sala avança para o instante fatal.
Vou apanhar o chapéu e descer de encontro à bala que me espera.

Charles Kiefer, A dentadura postiça.